terça-feira, 21 de janeiro de 2014

His way.


 
 
 
 
 
 

         Aparentemente, esta fotografia de um casal sofrido, com duas bandeirinhas americanas nas mãos, é igual a tantas outras. E talvez seja. Percebemos que se está perante uma cerimónia de homenagem, a uma pessoa morta ou a uma nação inteira. As flores e o ar compungido dos presentes indiciam a comoção própria das ocasiões fúnebres, das evocações da memória de vidas perdidas. Ando há algum tempo para falar desta imagem. Banal, igual a tantas outras, mas única e irrepetível, no rosto da senhora que emana uma dor suave e contida, a pior de todas.  
         Pensei que se tratasse, como tantas vezes sucede, de uma fotografia dos pais de um soldado morto em combate. No Vietname, talvez. Depois, quando surgiu o nome de Eddie Slovik, vi que a morte fora mais antiga. Ao princípio, julguei tratar-se da viúva de Slovik, que também entra nesta história. Mas não. É Anna Kadlubski, a irmã mais velha do soldado Slovik, acompanhada do marido, John.
         Parecendo mais antiga, talvez devido aos tons sépia, a fotografia é de 1987. Nesse ano, ao fim de quarenta e dois anos, Eddie Slovik foi enterrado no Michigan, onde nascera. Não foi fácil, nada fácil, quatro décadas de espera.
 
 
Eddie Slovik
 
 
         Para a História, a biografia de Edward Donald Slovik resume-se em poucas palavras: foi o primeiro soldado americano a ser fuzilado por deserção desde a Guerra Civil, e o último a quem tal pena foi aplicada. Em 31 de Janeiro de 1945, em França, nas imediações da aldeia de Ste-Marie aux Mines, por ordem pessoal do general Eisenhower, Eddie Slovik foi fuzilado. Pouco mais haveria a dizer, excepto uma estatística desconcertante: durante a 2ª Guerra, mais de 21 mil militares americanos foram condenados por deserção. Desses, 49 foram condenados à pena capital. Mas apenas a um essa pena seria efectivamente aplicada. Em dezenas e dezenas de anos, entre milhares de condenados por deserção, apenas um homem foi morto no teatro da guerra: Edward Donald Slovik.
         Um, entre milhares. Nada de especial, sobretudo no meio de uma guerra que matou vários milhões, muitos. Aparentemente, pouco haveria a dizer: mais um fuzilamento na frente de combate. Quase tudo na sua vida apontava para um desfecho assim: filho de imigrantes polacos, nascido em Detroit, em 1920, Eddie passou a adolescência em reformatórios, por furtar doces, pastilhas elásticas e cigarros. Após sair do reformatório, conheceu Antoinette Wisniewski. Casaram em Novembro de 1942, numa festa que durou três dias. Foram viver para a casa dos pais da noiva. Eddie arranjou trabalho, o casal arranjou casa. Moraram ali durante um ano, na convicção tranquila de que o passado delinquente de Eddie o iria salvar de ser incorporado, pois determinavam os preceitos militares. A falta de tropas levaria a uma reclassificação e, dias depois de completar um ano de casado, Eddie Slovik recebeu uma notificação para se apresentar ao serviço. Em 24 Janeiro de 1944 – ou seja, há setenta anos, e quase no final da Guerra –, Eddie Slovik foi enviado para um campo de treino do Texas. O seu temperamento não se adaptava à vida militar, bastando dizer que, nos 372 dias que serviu o Exército, enviou 376 cartas para casa – para os pais, para a mulher. Mais de uma carta por dia. Na última que escreveu, dizia não ter tido sorte na vida. E, de facto, não teve. Julgava que seria dispensado de ir à guerra, foi incorporado por uma súbita falta de homens nas fileiras. Tinha casado e assentado na vida, já não era o pequeno marginal de outrora. Fugiu do quartel, foi condenado. Quando o capturaram, trazia consigo uma nota em que confessava os factos; os que o prenderam disseram-lhe para destruir essa prova fatal, em que se auto-incriminava. Recusou, na suposição de que apenas seria preso, o que era preferível a combater os alemães. Desconhecia, por certo, que as deserções estavam a alastrar em massa e que Eisenhower precisava de alguém que servisse de exemplo dissuasor. Como ele, 21 mil homens haviam desertado. Mas, de todos esses, só Eddie Slovik foi fuzilado por deserção. O primeiro desde a Guerra Civil, o único na 2ª Guerra. Má sina. «O rapaz mais azarado que alguma vez existiu», assim o descreveria a viúva, a mulher com quem esteve casado apenas um ano.
 
 
Antoinette e Eddie Slovik
 
 
         Desertara uma vez, já em França, foi capturado e reintegrado nas fileiras. À segunda tentativa foi condenado à morte. O processo foi expedito, porventura em demasia, já que nem oportunidade teve para comunicar a condenação à sua mulher. No dia da execução, um dos que o iriam fuzilar disse-lhe: «Try to take it easy, Eddie. Try to make it easy on yorself – and on us». Como muitos condenados, respondeu falando das desventuras de juventude: «Don’t worry about me. I'm okay. They're not shooting me for deserting the United Stated Army – thousands of guys have done that. They're shooting me for bread I stole when I was 12 years old.»
 
 
O processo
 
 
         Foi enterrado em França, num cemitério secreto onde repousavam os restos mortais de 94 soldados americanos executados por violação ou homicídio. Não teve sequer direito a caixão, mas a uma mortalha de algodão. E, na sepultura, não constava o seu nome, só um número, por vergonha. Eddie Slovik foi o único condenado por um crime estritamente militar. Morreu com onze tiros, em 31 de Janeiro de 1945. Melhor dizendo, não morreu de imediato, nem sequer onze tiros o mataram logo: morreu enquanto o pelotão de execução recarregava as armas. O Exército dos Estados Unidos nunca informou oficialmente a viúva da morte de Eddie Slovik.
         Sepultado em França, na companhia de cadáveres de violadores e homicidas, a história do cobarde ou valente soldado Slovik terminava aqui. Mas aqui começa uma outra história, a da batalha da sua mulher para resgatar o corpo – e o direito a uma pensão de viuvez. Antoinette Slovik morreria em 1979 sem conseguir o seu objectivo. Escreveu a sete presidentes dos Estados Unidos – nenhum deles concedeu o seu perdão a Eddie Slovik. Recusaram-lhe a pensão, argumentando que o marido morrera em circunstâncias desonrosas – pouco depois, o Congresso aprovou legislação nos termos da qual Antoinette Slovik, e outros como ela, teriam direito a uma pensão pela morte dos maridos. Vivendo sob um pseudónimo, Annette morreu aos cuidados da Segurança Social, sofrendo de problemas cardíacos e de um cancro no peito.    
 
 
Antoinette Slovik
 
 
 
         Em 1981, Bernard V. Calka, um veterano da 2ª Guerra, de origem polaca, chamou a si o caso. A viúva já tinha morrido, era indiferente que o corpo de Eddie, ao fim de tantas décadas, regressasse aos Estados Unidos. Não era essa a opinião de Bernard V. Calka. Não sabemos o que o motivou: talvez as mesmas origens polacas, talvez o facto de a história de Eddie se ter tornado famosa, em livros e filmes.
         Bernard V. Calka conseguiria, em 1987, que o Presidente Ronald Reagan autorizasse a trasladação dos restos mortais de Eddie Slovik para os Estados Unidos. Através de várias campanhas de angariação de fundos, Bernard Calka conseguira obter os 8.000 dólares necessários para trazer o corpo de França até ao cemitério de Detroit, onde hoje Eddie e Antoinette estão sepultados lado a lado. No dia do enterro, a irmã mais velha de Eddie Slovik, Anna, e o seu marido, John, acompanharam o cortejo fúnebre. A fotografia é aquela ali em cima. Compreende-se agora a bandeira americana: a irmã e o cunhado quiseram mostrar que um desertor pode ser um patriota. Ou, pelo menos, não deixa de ser o cidadão de um país. Além de resgatar o private Slovik, Bernard Calka escreveu a vários presidentes – Reagan, Bush, Clinton –, tentando obter um perdão federal pelos actos de um homem que nunca conheceu.  
 
 
A trasladação, 1987
 
 
 
         Alguns companheiros de armas referiram que Eddie não era um cobarde (aqui ou aqui), que desertara por razões que só a ele, e à sua consciência, diziam respeito. Um dos juízes que o condenou disse que a pena aplicada não fez o menor sentido, que todo o processo fora mal conduzido, era um exemplo de «injustiça histórica» (aqui). Má sorte naquela morte. Pouco interessa que Eddie Slovik seja um herói, ou não. Talvez, no limite dos limites, se justificasse condená-lo, tendo em conta as circunstâncias excepcionais dos tempos de guerra. E, possivelmente, o processo não foi justo.
         Tudo isso pouco interessa, passados estes anos todos. Como pouco interessa, para o que aqui me interessa, que a figura de Eddie Slovik se tenha tornado famosa, com vários livros a ele dedicados, livros depois adaptados a séries de televisão (uma delas, com um jovem Martin Sheen). Filmes, muitos, e até uma canção; ou mesmo duas.  
         Só importa contar que, em 1960, Frank Sinatra pensou em produzir um filme chamado The Execution of Private Slovik, tendo como argumentista um perseguido de MacCarthy. O caso suscitou controvérsia, a ponto de Sinatra ser acusado de simpatias comunistas… Como Sinatra era apoiante de John F. Kennedy na sua corrida à Casa Branca, e como a suspeita de simpatias comunistas era pior do que a lepra nos tempos da Guerra Gria, o candidato presidencial conseguiria dissuadir o cantor de prosseguir o seu projecto cinematográfico. John Kennedy ganharia as eleições, sucedendo a Dwight Eisenhower, o general que ordenara a execução de Eddie Slovik. Quanto a este, morto aos 24 anos de idade, o pobre azarado que acabou fuzilado, será talvez quem mais merece o título – e a letra – da famosa canção de Sinatra. Sim, obviamente: My Way 
 

António Araújo
 
 
 
 

 

3 comentários:

  1. Sim, foram os alemães que descobriram que o cigarro produzia o cancro pulmonar. Vamos chamar de efizema pulmonar, fica mais fácil. Não tem cura. Deixar o vício não resolve o problema.

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